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"Quem decide, direta ou indiretamente, é sempre o povo"
Em entrevista à DW, especialista em Direito Constitucional afirma que, do ponto de vista jurídico, é legítimo o Congresso alterar Constituição e diz que dar ao povo direito de eleger presidente não pode ser um problema.
Enquanto Michel Temer se mantém no poder, e partidos da base e da oposição, nos bastidores, buscam, ainda sem sucesso, uma saída para a complexa crise política do Brasil, o Congresso barra a votação de uma proposta de emenda constitucional [PEC] que viabilizaria a eleição de maneira direta, ou seja, com o voto dos eleitores brasileiros.
Para o professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP), Virgílio Afonso da Silva, se a eleição for indireta, o Congresso terá que regulamentar algumas regras, como qual será a maioria exigida de votos e a forma de votação (secreta ou aberta). Ele acrescenta, ainda, que o debate sobre eleição direta e indireta é estritamente político, já que, sob o ponto de vista legal, é legítimo o Congresso alterar a Constituição.
De certa forma, afirma, quem decide direta ou indiretamente, é sempre o povo: "Mudar a regra no meio do turbilhão é sempre arriscado, verdade. Mas isso é muito mais um problema político do que jurídico.”
DW Brasil: Há uma previsão legal, constitucional, para que a eleição do próximo presidente, caso Michel Temer (PMDB) deixe o cargo, seja por via indireta.
Virgílio Afonso da Silva: Isso, se os cargos de presidente ou vice-presidente ficarem vagos na segunda metade do mandato, nos últimos dois anos. Artigo 81 da Constituição.
Há uma contextualização histórica para essa previsão constitucional?
Não existe nenhuma pesquisa explícita sobre isso nos debates da Constituinte de 88. Não existe uma razão especial para ser assim. Na verdade, creio que há uma razão simples e intuitiva: para fazer eleição direta dá muito mais trabalho, há muito mais custo. E a ideia é de que quanto mais você chega ao final do mandato, menos faz sentido, pelo menos a partir deste ponto de vista, fazer uma eleição direta. Vamos supor que o cargo fique vago um mês antes do final do mandato. Imagine todo o trabalho, o gasto, campanha, etc, para um próximo presidente completar um mês de mandato. Isso não faz sentido. A ideia é essa: quanto mais perto do final do mandato, paulatinamente vai fazendo menos sentido a eleição ser direta.
Todas as constituições estaduais fazem essa diferenciação [de eleição direta e indireta ao final do mandato]. Algumas, em vez de dois mais dois, fazem três mais um, ou seja: se a vacância for nos três primeiros anos, convoca-se nova eleição direta. Se for no último ano, indireta. Mas é sempre esse mesmo espírito. Quanto mais perto eu chego do final do mandato, menos sentido faz movimentar tantas coisas, dinheiro, recursos, para fazer uma eleição de quem apenas vai completar o mandato. Porque a regra é sempre assim: quem é eleito simplesmente completa o mandato. Não vai ficar quatro anos mais.
Mas a própria Constituição prevê que, em caso de eleição indireta, é preciso haver regulamentação, certo?
Sim. A própria Constituição fala, no artigo 81, parágrafo primeiro, que: ocorrendo vacância nos últimos dois anos do período presidencial a eleição par ambos os cargos será feita 30 dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei. Ou seja, tem que regulamentar como isso funciona. A Constituição só dá três informações: se for nos dois últimos anos de mandato será eleição indireta, pelo Congresso Nacional, no máximo em 30 dias deve ser realizada.
Só que os detalhes seriam definidos em uma lei ordinária, que nunca foi feita. O que são esses detalhes? Uma questão importante é como será feita a votação. É voto aberto ou votação secreta? É maioria simples ou maioria absoluta? Um turno ou dois turnos? Há detalhes que não estão disciplinados. Não há lei que diga isso. Existem outros detalhes, sobre quem pode ser candidato, mas na minha opinião isso a legislação sobre eleições já existe e ela continua valendo. O que precisa definir, por assim dizer, é de quantos votos eu preciso ali na hora da eleição. Mais da metade ou maioria absoluta?
Se houver uma costura política para que alguém que não tenha filiação partidária há pelo menos seis meses entre na disputa, há brecha legal para isso ser modificado? Isso poderia, por exemplo, entrar nesta lei ordinária que regulamentaria a eleição indireta?
Creio que é difícil que isso ocorra neste momento, fazer uma nova lei. Aí é uma questão de interpretação. Tem gente dizendo que as regras de normalidade não valem para esse caso, que são os prazos de filiação, desincompatibilização. Em eleição normal, se alguém que tem cargo majoritário (prefeito, governador) quer se candidatar, tem que sair seis meses antes. Tem que se desincompatibilizar. Há quem diga que isso não se aplica a uma eleição eventual agora. Eu acho que se aplica. Não há nenhuma razão para não se aplicar. As regras gerais para eleição se aplicam para essa eleição também. Claro que algumas delas não fazem sentido, como campanha, horário eleitoral gratuito. Se a população não vai votar, quem vai votar é o Congresso, isso não faz sentido. Tirando isso, todas as outras regras são aplicáveis.
O Congresso terá que fazer uma lei ordinária de qualquer maneira ou isso pode não ser necessário?
Teria que ter sido feito. Mas não foi. Como não foi feita, isso vai ser definido por analogia em alguns casos. O Congresso vai decidir meio que ad hoc, na hora, e talvez tenha questionamento no Supremo Tribunal Federal e o STF terá que dizer como funciona. Você tem regras no regimento do Congresso Nacional sobre eleição. Algumas coisas talvez você possa aproveitar. O resto vai ter que definir para este caso específico. Não tem outro jeito.
Neste cenário é muito provável que, de novo, o Supremo seja chamado a intervir neste processo, como ocorreu no impeachment?
Sim, é muito provável. É bastante provável. O STF só age por provocação. Se ninguém pedir, o STF não pode fazer nada, ainda que discorde do processo. Mas sempre terá um lado que não está satisfeito com o processo. A chance de ser provocado é enorme.
Os contrários à eleição direta argumentam que não se pode criar uma exceção, não se pode mudar a regra no meio do jogo, não se pode buscar uma saída fora da Constituição. Na sua avaliação, se votada uma emenda constitucional que permita uma eleição direta, isso é mudar o jogo em andamento?
Não. Há duas perguntas possíveis. E uma é política, não jurídica: seria bom ter eleição direta agora ou não? Outra pergunta é: eu posso mudar a Constituição agora? Posso. E essa emenda não apareceu agora, ela é do ano passado. Então pode. O Congresso Nacional pode mudar a Constituição.
Isso significa que, do ponto de vista jurídico, mudar a Constituição agora não é ilícito?
Se você faz uma emenda constitucional para haver eleição direta, você está mudando quem elege o novo presidente. Você tira esse poder do Congresso Nacional e passa para os eleitores. Quem é que perde? O Congresso, que é quem teria o poder de eleger o presidente da República. Como quem faz a emenda constitucional é o próprio Congresso, é um problema a menos. Não é que alguém, de fora, tirou do Congresso o poder de eleger. É o Congresso abrindo mão do poder ao votar uma emenda constitucional. Então o problema é menos drástico. Seria diferente se, alguém de fora, tirasse o poder do Congresso. Mas não é isso, porque quem muda a Constituição é o próprio Congresso. Se o Congresso disser ‘eu quero eleição direta', você tem um problema a menos.
Mas essa decisão é muito mais do campo da política do que um debate jurídico.
Sim, é um debate sobre o que é melhor fazer agora. Do ponto de vista jurídico, você pode dizer que quanto menos se mudam as regras, em tese, melhor. Como regra geral. Estabilidade é sempre bom. Mudar a regra agora é um pouco de casuísmo? É. Mas, você não está mudando a regra para tirar poder do povo. Se fosse o contrário seria bem mais sério. Se a Constituição estabelecesse que a eleição é direta e você faz uma emenda constitucional dizendo que ela será indireta, aí sim seria seríssimo. Mas é o contrário: você está passando para o povo, devolvendo ao povo, o poder. De certa forma, quem decide direta ou indiretamente, é sempre o povo. É difícil dizer que é um problema passar o poder ao povo. Mudar a regra no meio do turbilhão é sempre arriscado, verdade. Mas isso é muito mais um problema político do que jurídico. É ruim mudar regras em meio a crises, mas às vezes pode ser que isso seja necessário, do ponto de vista político, para distensionar as coisas e criar mais legitimidade. Do ponto de vista jurídico, dar ao povo o poder de eleger o chefe do país, é difícil dizer que isso é um problema.
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