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Por Márcio Sotelo Felippe

// Na Coluna ContraCorrentes


José da Silva era um jovem brasileiro que enfim havia conseguido um posto no mercado de trabalho formal após concluir, com atraso, a 8ª. série. 
Depois de alguns bicos e empregos sem registro, conseguiu um lugar com anotação na carteira e começou a pagar INSS. Salário parco, mas que lhe permitiu alugar um cômodo e casar com sua namorada Maria dos Santos, que estava grávida. Ele pensou que tinha muita sorte na vida, porque essa gravidez calhou de ser quando conseguiu o emprego de 1,5 salário-mínimo. 

Comprou a mobília a prestação, pagava luz, água, gás, mantimentos básicos, alimentação do bebê e roupas. Sobrava quase nada, só dinheiro da cerveja no boteco de vez em quando, e Maria, sempre às voltas com os cuidados com a criança, só se distraia mesmo vendo a novela da Globo na TV, no aparelho que tem ainda 19 meses de prestação.

Mas a empresa em que José trabalhava fez uns cortes de pessoal. Como qualquer empresário esperto sabe, quando se faz cortes os custos da rescisão são menores para os que têm menos tempo de serviço. José tinha 17 meses de trabalho e foi pra rua.
As prestações da mobília atrasaram, a luz foi cortada. Por sorte a mãe de José, viúva, tinha um dinheirinho guardado e dava algum para o leite do bebê (o pai de Maria é desconhecido e a mãe mora no sertão nordestino).

José foi atrás do seguro desemprego. Ele sabia que contribuindo 6 meses tinha direito. Mas na repartição disseram que o governo aumentou o prazo. Agora precisava pagar 18 meses, e ele tinha apenas 17 meses de contribuição.
José saiu da repartição tão desnorteado, pensando como fazer para pagar as prestações, comer e alimentar o bebê, que não viu o ônibus. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.

Maria, com um bebê para criar, foi atrás da pensão por morte. Ela sabia que se o marido estivesse contribuindo para o INSS tinha direito. Mas na repartição explicaram que o governo havia alterado isso. José teria que ter contribuído 24 meses, e só contribuiu 17 meses.

Fritz e Eva são um casal alemão. Ficaram desempregados. Recebiam salário-desemprego. Eles tinham 2 filhos em idade escolar, de 12 e 14 anos. A vida ficou bem difícil. As despesas escolares com os filhos e as necessidades deles crescendo à medida em que se tornavam adolescentes afetavam os gastos essenciais à sobrevivência, como alimentação, higiene, saúde, aquecimento, roupas, etc. Tinham um casal de amigos, Friedrich e Milda, 
também desempregados e recebendo seguro-desemprego. Frederich e Milda, com 2 filhos, de 3 e 5 anos, tampouco estavam dando conta da sobrevivência. Fritz e Eva viram que recebiam a mesma quantia de benefícios sociais pelos dois filhos em idade escolar que Frederich e Milda pelos seus que, em idade pré-escolar, tinham necessidades muito menores.

Fritz e Eva tinham ouvido falar da Lei Hartz IV. Uma comissão formada pelo governo alemão e presidida pelo executivo da Volkswagen (por que não estamos surpresos?) Hartz havia proposto uma reforma previdenciária e trabalhista, transformada em lei, que rebaixava os benefícios sociais e utilizava critérios estatísticos questionáveis para fixá-los. Viram que segundo a comissão Hartz (e depois segundo a lei alemã) não fazia diferença que os filhos tivessem zero ou 14 anos.

Fritz e Eva foram aos tribunais alegando que o Estado alemão não os provia das condições necessárias de subsistência e que a responsabilidade era da reforma Hartz, que deveria ser declarada inconstitucional por ferir o princípio da dignidade humana.
O Tribunal Federal Constitucional da Alemanha decidiu que o mínimo existencial deve cobrir os meios que são vitais para manter uma existência de acordo com a dignidade humana, que englobe tanto a existência física dos indivíduos, alimentação, vestuário, utensílios domésticos, habitação, higiene, saúde, quanto a possibilidade de manter relações inter-humanas e um mínimo de participação na vida social, cultural e política.

[1]
Fritz e Eva, assim, ganharam a demanda. O Tribunal não disse qual seria exatamente o valor dos benefícios que garantiriam o mínimo existencial. Mas determinou ao Legislativo que no prazo de um ano renovasse o procedimento que o fixou e fizesse uma avaliação realista dele de modo a garantir subsistência digna. Por exemplo, não uniformizar sem qualquer critério os benefícios para famílias que tem filhos de 0 a 14 anos, como se as necessidades fossem idênticas em qualquer faixa de idade.

A decisão foi fundamentada no princípio da dignidade humana. A Lei Fundamental da Alemanha consagrou esse princípio como texto constitucional no pós-guerra e naquele momento era trivial interpretá-lo como uma resposta histórica à barbárie nazista, em modo lógico negativo. Ou seja, o Estado deveria abster-se de condutas que violassem o direito das pessoas à vida, integridade física, etc. Mas o tempo não poderia deixar de tornar claro que do modo negativo alcança-se, logicamente, por inferência, o modo positivo. O Estado não deve só abster-se de condutas para garantir aos cidadãos a sua existência (como não matá-los), mas também promover positivamente essa existência de modo a torna-la digna. A decisão do Tribunal alemão fixou esse paradigma positivo da dignidade humana.

Nossa Constituição diz, no artigo 1º., que a dignidade humana é fundamento da República. No artigo 3º que é objetivo fundamental da República construir uma sociedade justa, livre e solidária e erradicar a pobreza e a marginalização.
Certamente não há qualquer diferença ontológica entre o princípio da dignidade humana inserta na Lei Fundamental da Alemanha e aquele contemplado pela nossa Constituição.

Fritz e Eva não foram aos Tribunais reivindicar um benefício porque viviam na mais absoluta miséria ou por depender de entidades assistenciais voluntárias. O benefício eles já tinham. Argumentaram que era insuficiente e essa insuficiência, concordou o Tribunal, violava o princípio da dignidade humana. O Tribunal determinou ao Legislativo que fizesse cálculos e utilizasse métodos transparentes e consistentes. José e Maria, que também vivem em um país cuja Constituição assegura o princípio da dignidade humana, leriam na Exposição de Motivos da Sra. Presidente que os auxílios sociais que pensavam ter não existem mais para “beneficiar os trabalhadores mais vulneráveis”.

Segundo o DIEESE, o número de trabalhadores que não tem acesso ao auxílio-desemprego passará, com as medidas de Dilma-Levy, de 3,2 milhões para 8 milhões. De acordo com a Auditoria Cidadã, a União gastou 45% do seu orçamento para pagar juros e amortizações, o que significa, em reais, a bagatela de 978 bilhões. É parte do dinheiro que José e Maria necessitavam para sobreviver e que está no bolso dos bolsos de rentistas e especuladores, e bem assim 4,8 milhões de brasileiros.

A Alemanha, sociedade capitalista, consegue dar um mínimo de concretude ao princípio da dignidade humana sem absolutamente nada de revolucionário.
Enquanto algum Tribunal brasileiro não der concretude nesse plano ao princípio da dignidade humana (e exigir um mínimo de racionalidade do Executivo para que não tenhamos que ler que medidas dessa natureza existem para “beneficiar os trabalhadores mais vulneráveis”) compete a nós dizer, em nossas aulas de Direito ou palestras, que o princípio da dignidade humana no Brasil não passa de um ornamento constitucional.

Se o princípio da dignidade humana tem algum sentido, o saco de maldades de Dilma-Levy é inconstitucional.     

        
Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
Junto a Rubens Casara, Marcelo Semer, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

VIA GGN


                                             Fonte:
Justificando.com
http://justificando.com/2015/03/28/a-inconstitucionalidade-do-saco-de-maldades-de-dilma-levy/



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